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24 de fevereiro de 2015

Impotência

O vapor exagerado da água quente do chuveiro embaciara as paredes de azulejo, e o espelho reflectia uma névoa caseira com aroma a toranja.

Ele encontrou-a sentada no chão do duche, com a cabeça apoiada no banco que ele tão atenciosamente colocara lá, como medida necessária.


Ela escondia o rosto molhado entre os braços, e o corpo tremia desnudado, com pedaços de espuma a escorregar.

Ele olhou para ela, ou para o que restava da mulher que ele conheceu. Estavam juntos há dez anos. Ele conheceu-a no seu melhor, amara-a no seu pior, respeitou-a mesmo quando não se respeitou a si próprio. E o que mais lhe custava era ver que a mulher que ele sempre conheceu, com que cresceu e partilhou quase metade da sua vida, estava presa naquele corpo que não lhe obedecia.

Ela não tremia de frio; ela tremia porque chorava compulsivamente. Chorava porque a simples tarefa de lavar o cabelo a levava à exaustão; chorava porque tomara a consciência que estava mesmo doente. E chorava porque perdera essa luta.

- Amor, então? Estás bem? - o cuidado e o carinho embebiam cada sílaba que saía da boca dele.

- Não consigo. Não consigo acabar de tomar banho. Estou tão cansada... Não tenho forças.

Ele despiu-se e juntou-se a ela. Ligou o chuveiro e começou a molhá-la, erguendo cuidadosamente o corpo dela do chão. Olhou-a nos olhos, com receio que a preocupação se espelhasse neles, beijou-a e amparou-a num abraço apertado.

- Tu não estás sozinha. Vá, eu dou-te banho. 

- Tenho de cortar o cabelo curto. Não posso andar sempre nisto! - as lágrimas eram disfarçadas pela água do chuveiro, mas ela sentia a dor trespassar-lhe o peito, a humilhação de ficar dependente era avassaladora e apoderava-se da sua esperança.

- Tu não vais cortar nada. Eu lavo-te o cabelo. Hoje, e todos os dias que precisares.

Ela sorriu. Pegou no chuveiro e lavou a cara.

Ela perdera a luta contra o cansaço de lavar o cabelo. Perdera a dignidade de acabar o banho sozinha.

Mas ela tomará muitos mais banhos. E ele estará sempre com ela.

Sim, ela perdeu essa luta; mas mais lutas virão. E ela sabe agora que, na verdade, não está sozinha.



(Dedicado ao meu incansável companheiro. Sem ti, não conseguiria lutar todos os dias. Obrigada por seres a minha força!)

11 comentários:

  1. «Ele conheceu-a no seu melhor, amara-a no seu pior, respeitou-a mesmo quando não se respeitou a si próprio. E o que mais lhe custava era ver que a mulher que ele sempre conheceu, com que cresceu e partilhou quase metade da sua vida, estava presa naquele corpo que não lhe obedecia.»
    Muito bom Cláudia! :) continua a tua luta e não pares de escrever!

    http://dreamcate.blogspot.pt/

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  2. Desconhecia a doença, como tambem desconhecia que a tinhas... Muita força!! E que sejam muito muito felizes...Tens ai um Homem com H grande!! beijinhos

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    1. Obrigada querida! Tenho pois. A doença é desconhecida para muitas pessoas. Eu conheço-a como as costas da minha mão... Aprende-se a conviver com ela! Beijocas :)*

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  3. Texto lindo que transmite o que sentes interiormente. Muita força minha AMIGA e parabéns por o HOMEM que tens ao teu lado.

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  4. Adorei :O a sério mesmo parabens :3 Já te sigo :3
    Quero dizer também que comecei um novo serviço no meu blog, acerca de renovações de Blogs, cabeçalhos/Logos, entre outros, podes espreitar se quiseres, e qualquer coisa contacta .

    Beijinhos,
    http://wordsofsophie.blogspot.pt/

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  5. muito lindo, parabéns pelo companheirismo do seu companheiro, também passei pelo mesmo, não foi para lavar o cabelo, mas sim para fazer xixi, era o meu marido que me ajudava com um bacio, pegava me ao colo,

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    1. É muito bom sabermos que podemos contar com a ajuda da pessoa com que partilhamos a vida... Um bem haja para os dois!

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  6. Querida, passei pelo mesmo que tu(digo passei porque agora tenho ajuda, estou numa casa de repouso)e ao ler ía me sentindo grata e cada vez mais grata por tu teres um companheiro como o teu..
    Amei e estou-te grata por teres partilhado.

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