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4 de fevereiro de 2015

Último Adeus


Tentara adiar visitar a avó, mas naquele dia o pesar no peito fê-la ir ao hospital.

Nunca gostara daqueles sítios a tresandar a desinfetante e repletos de pessoas com a dor a refletir-se em gemidos constantes.



Quando era criança, iam quase todos os Verões à praia, naquelas excursões que as juntas de freguesia organizam. Jogavam à bisca e Sofia só conseguia vencer a avó quando ela fazia de propósito para lhe mostrar as cartas. Com os primos e as tias, faziam piqueniques onde o bolo de bolacha da avó Maria nunca faltava.

Sofia era a única neta e excelentemente casada. Mas quando o seu casamento terminara, a avó Maria não quis saber a versão da neta, e afastara-a desmesuradamente.

Mas ao chegar àquele quarto, deparando-se com a fragilidade daquele corpo quase desalmado, nada disso importou. Falou com o médico e o mesmo informou-a que o cancro estava num estado avançado e alertou-a para não ter expectativas de melhoras. Já nada havia a fazer.

- Doutor, o que quer dizer com isso? – ela sabia. Só queria ter a certeza.
- A sua avó, infelizmente, poderá falecer a qualquer momento.

Apesar de saber, à partida, que o que ele lhe dizia era já verdade a ela conhecida, o murro no estômago fez-se sentir. A confirmação era o que a comia por dentro, não o facto de saber o que aguardava pela Avó.

Aproximou-se da cama. O olhar da avó estava mais vazio que um poço no deserto. O azul dos seus olhos igualava os de Sofia, e quando estes se cruzaram, ela tentou falar. Apesar de tentar conter as lágrimas, estas rolaram no seu rosto quando pegou na mão magra da avó. A tentativa de falar fora em vão, e sem conseguir dizer uma única palavra, a avó apertou-lhe a mão com a pouca força que ainda lhe restava. E juntas choraram.

A partir daquele momento, nada mais interessou: o passado deixara de ter importância. O futuro dela não iria mais existir.

O pesar que Sofia tinha no coração não era remorso, muito menos pena. Era tristeza genuína. Era amor. E beijando-lhe a testa, tentou despedir-se, e sentiu que seria a última vez que a veria com vida. Saiu do quarto, e esqueceu todas as palavras frias que tinham sido trocadas, na tentativa de lhe transmitir a paz que tanto precisava.

Na manhã seguinte, o telefone tocou. No ecrã lia-se "Vó Maria".

Ela não precisava de atender; sabia o que lhe iam dizer. A tia Ana estava do outro lado e no meio dos soluços, conseguiu perceber que ficara encarregue de dar a notícia ao pai. Quando desligou, não conseguia respirar, não conseguia falar. Deixou-se cair, amparada pela parede, deixando que toda a mágoa e vazio se transformasse em lágrimas que ninguém conseguiria contar. Nada mais importava, agora. Ninguém mais importava, pois mais ninguém poderia trazer a avó Maria de volta do seu eterno sono. Pegou no carro e, sem perceber bem como lá chegara, encontrou-se com os pais na agência funerária.

Na tentativa de transmitir alguma força, conteve as lágrimas e escolheu a urna sozinha. O pai de Sofia, desolado com a partida da sua própria mãe, era a imagem do desnorte. E, mais uma vez, restou a Sofia ser a pessoa mais forte da família e tomar as rédeas do necessário processo. Contactou toda a família e ficou aliviada quando a agência a informou que tratariam de todas as burocracias.


É tão triste quando uma família se reúne apenas nas grandes festas ou nas grandes tragédias. Mas assim avança o mundo, e assim foi esse dia. Foram todos para casa da avó, almoçaram em silêncio e o último traje estava escolhido. Às 3 da tarde, Sofia foi buscá-la ao hospital, uma última vez. A última vez que Sofia ia buscar a avó Maria. Estranhou pensar naquele acto assim, quando na verdade era o carro funerário que ia à sua frente a transportá-la, e ela apenas acompanhava aquele negro cortejo no seu carro. O caminho até à casa mortuária pareceu-lhe infinito e a visão da estrada confundia-se com as lágrimas que lhe enchiam os olhos.

Contando cada passo que dava, entrou na casa mortuária, dirigiu-se à urna e levantou o véu que cobria a sua avó. Beijou-lhe o frio rosto e sussurrou:

- Amo-te muito ‘vó. Nunca te esqueças disso – e chorando, acompanhou a multidão até à última morada de Maria.

Ajoelhou-se, lenta e serenamente, e agarrou um punhado de terra barrenta. Cumprindo com o ritual que imperava, atirou a terra para cima da urna juntamente com uma rosa branca. Dentro de si as mesmas palavras teimavam em pulsar: 
                            
“Agora podes descansar. Agora já não sofres. Agora estás em Paz.”

E pela primeira vez, naqueles dias, naquelas horas todas, sentiu uma bemvinda sensação de calma embrulhada com a paz que desejava à avó Maria. Como que a responder-lhe, os céus abriram para deixar passar a luz do Sol.

Quando olhou para cima, sentindo aquele calor, nem notou que a luz a iluminou a ela e à última lágrima do dia.

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